sexta-feira, julho 15, 2011

MÉDICOS DE ÓRGÃOS OU DE GENTE?


De: Marinah Flor de Maio

Hoje em dia, no hospital, o que vejo são médicos tratando órgãos e/ou doenças e não pessoas.

Restabelecem, por exemplo, o ritmo certo de um coração ou trocam uma válvula, ou desentopem uma artéria e dizem: "chame a assistente social para organizar a alta deste paciente, pois já não temos mais razões de terem o paciente internado, já tratamos o problema."

Assim, muitas vezes, vou ao encontro de um coração tratado, mas, me deparo com uma pessoa exausta, fragilizada, sofrida, muitas vezes deprimida por ter vivido o que aquela doença simboliza em sua vida: o confronto com os seus limites e suas fraquezas.

Eu começo então a tratar o processo de restauração da pessoa como o todo. Restaurar as forças, a confiança no corpo e na vida.

Sim porque eu não trato doenças e pouco sei de órgãos. Eu cuido de gente.

Daí, geralmente decido que o paciente não tem condições de ir para casa e passo todo o tempo que preciso procurando a melhor clinica de reabilitação para esta pessoa. A Holanda é um país das maravilhas quando se trata destas coisas. Somente temos listas de espera. Às vezes, eu postergo a alta e passo a organizar as condições necessárias para que o paciente se restaure ao ponto de poder ir para casa com segurança.

Os doutores de gente, que são poucos, ainda valorizam muito a assistente social. Eles dizem: "eu cuido da doença e você do paciente, juntos cuidamos de gente."

Mas, a maioria dos médicos desgosta da assistente social porque nós os fazemos lembrar de que, infelizmente, órgão e doença vêm incluídos em um ser humano.

O sistema de saúde esta organizado de tal forma que cuidar de doença ou de órgãos é muito mais lucrativo do que cuidar de gente.

Na verdade, o meu papel no hospital é de analisar e aconselhar somente. O médico é quem decide se interna ou se dá alta. Porém, todos os médicos sabem que se derem alta a um paciente nas condições em que eu avaliei que não deveriam, mais adiante, se algo que eu houver previsto der errado, a responsabilidade cai sobre eles. E, se no prontuário do paciente a comissão de qualidade ler que algum profissional aconselhou a postergação da alta, isto vai lhes custar muita grana.

Assim, os médicos tentam pressionar a assistente social a avaliar como eles, ou, no mínimo, não escrever no prontuário do paciente um conselho oposto ao que eles querem – dar alta o quanto antes – para que assim tenham vaga para mais uma doença ou órgão.

Hoje fiquei sabendo de um paciente que o cardiologista deu alta, numa quarta feira que nunca trabalho, fez a cabeça da família dizendo que para o paciente seria melhor estar em casa, pois era seu porto seguro e ele iria se orientar melhor e sarar mais rápido do delírio. O levaram para casa, mesmo eu havendo visto que cada mudança no hospital piorava o delírio. Avaliei e aconselhei a tratar o delírio por todo, para então tentar algumas horas em casa, depois meio dia, depois um dia todo e por aí ia.

A causa do delírio provavelmente era uma bactéria na urina que estava sendo difícil de tratar e o cardiologista argumentou que isso nada tem a ver com o coração. "Mande ele pra casa e deixe o médico de família cuidar da urina", disse o cardiologista.

O paciente foi para casa e, como eu havia previsto, se desorientou por completo, atravessou a rua, foi atropelado e morreu.

Li no jornal o que havia acontecido e já cheguei ao hospital preparada para o que viria. Fui chamada sala dos 6 cardiologistas.

Marinah, vc tem consciência de que vamos ter que responder e seremos julgados responsáveis pela morte deste paciente e que isso poderia ser evitado por você? – me perguntou um deles.

Eu dei o meu melhor sorriso e disse:

– Sim, diga ao juiz que o senhor tentou muito me convencer a não dar alta ao paciente, que o senhor rebateu e argumentou contra, que me parou no corredor do hospital, que me visitou no meu escritório, que me ligou. E, no dia seguinte, que me avisou de todos os riscos e ainda me escreveu e-mail, que escreveu no relatório, mas, infelizmente, eu, a assistente social, sou muito teimosa e argumentei que o paciente estava aqui para o implante de um marca passo, que isso não tem nada a ver com o delírio e que aqui o nosso negócio é cuidar de coração e não de gente. Diga isso! E diga ao juiz que eu assumirei a minha responsabilidade.

E fui.

O Cardiologista veio atrás de mim. Irado, gritou no corredor:

Qual é a sua ambição secreta?

Não respondi.

Fiquei a pensar: qual é a minha ambição secreta?

Ora? Por que eu teria uma ambição? E por que se eu a tivesse deveria ser secreta?

Eu não atuo por ambição, mas, por um chamado que Deus me fez pessoalmente em um sonho. Cuido de gente porque Jesus, neste sonho, me disse que morreria na cruz, de novo, se fosse para me convencer o quanto Ele me ama. Assim, Ele me ensinou que qualquer ser humano vale a pena o sacrifício. Que assim Ele cuidou de nós. E, me disse que eu cuidaria de gente em nome de Jesus.

É isso o que faço!

Lembrei de uma música de Michael W Smith que se chama "Ambição Secreta".

Ninguém sabia sua ambição secreta

Ninguém sabia sua reputação

Ele quebrou as velhas regras mergulhadas em tradições

Ele rasgou o véu sagrado

Questionando os poderosos

correndo para aqueles que chamavam seu nome

Porém, ninguém sabia que sua ambição secreta

Era a de entregar sua vida.


 

Senhor, eu entrego a minha vida a Ti porque nada mais quero do que pertencer a um Deus com o sistema de saúde mais bem bolado do planeta. Obrigada pelo melhor remédio de todos: Jesus. E, obrigada Senhor, por ter sido o único marca passo do meu paciente; por o ter acolhido e o sarado de seu delírio.

Amém!

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*Marinah é uma amiga brasileira/holandesa, assistente social em um grande hospital (500 leitos), mãe de duas crianças, Aisha (6) e Caio (3), casada com Michel (um policial holandês), reside em Hoofddorp, na Holanda, e que escreve coisas maravilhosas como essa, cheias de sensibilidade e humor, que eu pretendo continuar publicando aqui no blog.

Bento Souto

http://blogdobento.blogspot.com/

blogdobento@hotmail.com

Um comentário:

Chico Ribeiro disse...

Marinah, minha amada irmã !
Eu aqui de longe vejo uma santa ambição em ti, pois vejo a ambição como uma meta, como um alvo, e tudo isso pode ser facilmente constatado em seu cuidado com as pessoas.
Infelizmente, nesta vida nem todos nós temos as mesmas ambições.
Eu particularmente penso que ter ambição não é "crime", e nem tão pouco considero a palavra ambição um temo ofensivo.
O que precisa ser observado é a motivação, o "combustível oculto" que move a ambição.
Minha maninha, se o que te move é o desenfreado desejo em atender e ajudar vidas, santa e bendita é a sua ambição.

Você é gente, gente que cuida gente e da gente, cuida o Pai !

Muita Paz e um beijo em seu coração !